Reintegração de Posse Humanizada: uma oportunidade para ressignificar impactos

CASE – RELATO DA DIRETORA DO IDEIAS, MAÍSA PORTO

Acostumada a escrever relatórios técnicos para inúmeros projetos, desta vez me vi inquieta para contar sobre a mais recente experiência de imersão em campo que tive. Depois de tantos anos  focada no planejamento de estratégias, criação de instrumentais, ferramentas, gestão de projetos e de pessoas me vi na linha de frente, no campo, mão na massa e botina no pé. Essa
história faço questão de relatar na primeira pessoa e apresentar, sob o meu olhar, uma das mais inovadoras e transformadoras ações sociais: a reintegração de posse humanizada.

O cenário foi o nordeste do Brasil, historicamente palco de inúmeros processos conflituosos por terras, de um povo “arretado” com traços culturais únicos e que não foge da luta. Essa gente que encanta também nos faz refletir em ações específicas que respeitem suas bandeiras.

Entro neste cenário com o desafio de fazer GESTÃO SOCIAL SOBRE O PROCESSO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE de área privada. Compatível com uma área de aproximadamente 12 mil hectares (equivalente a 12 mil campos de futebol) e ocupada irregularmente por cerca de 900 famílias, eu e minha equipe tínhamos três objetivos principais:
1. Promover o diálogo social na busca por uma saída antecipada das famílias ao ato da reintegração de posse;
2. Conduzir o processo de reintegração de posse de forma pacífica, humanizada e respeitosa, acolhendo as famílias em suas necessidades prioritárias; e
3. Efetivar medidas mitigadoras de gestão, em especial com famílias vulneráveis compreendendo papel de responsabilidades do privado frente ao impacto gerado no deslocamento físico e econômico das famílias ocupantes.

Este meu relato não adentrará no mérito da decisão sobre a referida reintegração, uma vez que coube a instancias jurídicas a decisão favorável ao cumprimento do ato.

Tendo como ponto de partida a execução da ordem judicial fomos em busca do primeiro objetivo. Mapear stakeholders e realizar diagnósticos da área são primordiais para qualquer tipo de projeto desta natureza e, este não foi diferente. A leitura do território nos mostrou um cenário austero com poucas aberturas para o diálogo. Mas, tentamos. Tentamos por diversas vezes, com variadas estratégias, com a mediação de entidades isonômicas defensoras dos direitos humanos, porém, nem sequer tivemos a oportunidade de fazer visitas in loco, quem dirá ter contato com as famílias ocupantes. Os “muros” construídos pelas lideranças locais eram altos demais. A saída antecipada não se mostrou mais uma alternativa possível, embora parecesse frustrante, o desafio estava apenas começando.

Na gestão de projetos aprendi que, numa negociação, é preciso achar o MACNA (Melhor Alternativa em caso de Não Acordo). Neste contexto de ruptura de diálogo, o MACNA era planejar minuciosamente a operação, buscar a ciência e parceria de entes institucionais e capacitar as equipes envolvidas para que no “DIA D” tivéssemos uma operação orquestrada com vistas a conduzir a reintegração de posse de forma humanizada.

Foi a hora em que nos debruçamos no planejamento para desenvolver diversos fluxos procedimentais, dimensionar recursos (humanos e financeiros) e simular, por vezes, situações críticas. O privado, por sua vez, internalizou seu papel e mobilizou acomodações temporárias, transporte (de pessoas e de materiais), maquinários, segurança, serviços de apoio médico, alimentação, espaço para guarda de pertences das famílias, recursos financeiros emergenciais, além de colocar seu time interno alinhado para efetivar as ações necessárias.

Conjuntamente as entidades institucionais envolvidas direta e indiretamente, internalizaram suas responsabilidades e suas contribuições sobre o processo com atenção aos desdobramentos que refletiriam nos serviços e políticas públicas, pautados na promoção da cidadania às pessoas deslocadas.

Em um processo como este, o apoio do policiamento, militar e civil, é imprescindível. Porém, esta operação não possui um caráter somente cumpridor de decisão judicial. Essa operação agora se chama REINTEGRAÇÃO DE POSSE HUMANIZADA. Os valores sociais e de preservação dos direitos humanos são compartilhados com todos que participam da operação, inclusive com a força policial que neste caso foi fundamental para uma condução pacífica dos conflitos.

Planejamento criterioso feito, recursos provisionados e times alinhados. Embora nos sentíssemos preparados para fazer uma das maiores ações de reintegração de posse daquele Estado, era impossível prever o que aconteceria nos próximos dias. E, mesmo diante deste enorme desafio estávamos confiantes que faríamos o melhor por aquelas famílias. Só não
esperávamos que seria tão desafiador.

Comumente, os processos de reintegração de posse são marcados por fortes resistências, conflitos verbais acalorados, uso de força bruta, armas de fogo e choros inconsoláveis. A sensação de devastação e abandono é visível. Posso afirmar categoricamente: ninguém gosta de executar uma ação como esta. Nem do lado dos ocupantes nem mesmo do lado de quem precisa fazer cumprir a decisão judicial.

Está na hora de fazer acontecer. Chegou o dia! O sol ainda não apareceu e todas as equipes mobilizadas se unem para uma espécie de reunião de preparação. São quase 400 pessoas ouvindo atentamente as orientações de comando. Conferimos os equipamentos e saímos em comboio, num misto de ansiedade e medo, mas confiantes num time estrategicamente escolhido e minuciosamente treinado. No planejamento a história é encadeada, sempre tendo planos B, C, D como contornos para os possíveis desvios, mas como se diz na gíria esportiva: Treino é treino e jogo é jogo!

O primeiro contato é o cumprimento do rito judicial. O representante da esfera judiciária é quem inicia o processo, mas ele não está sozinho. Fazer a gestão social é estar presente e assumir o papel de mediador. Somos o meio do caminho e, por mais que este não seja o momento de grandes concessões, é necessário que a capacidade de se colocar no lugar do outro esteja aflorada.

Os lados antagonistas estão frente a frente. A tensão dos primeiros momentos fica a flor da pele. O risco de um conflito ser deflagrado ali mesmo é iminente. Esta, certamente é a hora mais tensa de toda operação.

Em um processo humanizado, a transparência é palavra de ordem. As operações que acontecem de surpresa, sem uma tentativa de diálogo aberto com os ocupantes costumam fomentar sentimentos negativos e a resistência é, talvez, o único recurso que as famílias possuem no momento.

É aí que começamos a falar sobre a importância da gestão social. É através do diálogo aberto e transparente que as famílias podem: (i) compreender o processo como um todo, ter um pensamento crítico e assim tornar-se responsável por suas decisões; (ii) optar pela saída pacífica evitando tumultos e conflitos de uma saída forçada; e (iii) acessar medidas mitigadoras oferecidas baseadas em suas necessidades individuais.

Porém, é preciso compreender que o contexto vivido em assentamentos irregulares é regido por lideranças possuem narrativas atraentes e convincentes, mas que escondem seus verdadeiros interesses e atos ilícitos, muitas vezes até criminosos. Com perfis autoritários, blindam as famílias de forma com que não sejam concedidos espaços para comunicação.

Bem, no dia da reintegração as lideranças de alto escalão não são facilmente encontradas. Sem conhecer alternativas de apoio e muitas vezes sozinhas, as famílias resistem até perceberem que, naquele momento, não há outra alternativa a não ser desocuparem seus imóveis.

Entre o momento do anúncio do cumprimento da ordem judicial e o início da retirada das benfeitorias, há um respeitoso período de tempo para que os ocupantes possam dialogar entre eles e uma espécie de autorização para o começo da operação é anunciado.

Preparamos frentes de trabalho multidisciplinares com olhares sociais, técnicos e operacionais para abordar as famílias, identificar suas vulnerabilidades, direcionar as medidas de gestão emergenciais de acordo com os critérios estabelecidos, cadastrar as benfeitorias e culturas
presentes, apoiar na retirada e identificação de pertences e por fim ordenar a demolição dos imóveis.

Há de se convir que não somos bem-vindos pelas famílias. É aí que as habilidades interpessoais se sobressaem a qualquer técnica. Empatia para compreender a dor do próximo, paciência para aguardar o melhor momento para abordar, perspicácia para resolver problemas emergenciais, agilidade na execução, foco para saber tomar as melhores decisões e energia para aguentar o trabalho de campo. Esse trabalho, definitivamente, não é fácil. Há desgaste físico (que nenhuma sala de musculação me preparou) mental e emocional, talvez este seja o maior.

Mas à medida que avançamos nas difíceis abordagens nosso discurso se fortalece, as tais medidas de gestão oferecidas às famílias vulneráveis se materializam e reverberam. Em dado momento, passamos a ser procurados pelos ocupantes para atendimento a casos em que a ajuda é essencial a sua saída.

E a roda operacional gira. Sim, erros acontecem, atropelos, ruídos e falta de comunicação como em qualquer atividade que envolve gente. Todavia, a minuciosa preparação garantiu que todos conhecessem seus papeis e suas responsabilidades. A vontade de fazer acontecer era nítida nos olhos de todos aqueles envolvidos.

Por outro lado, as resistências não cessaram. Em dado momento as falas e o tom de voz eram contidos, já em outros havia ódio inflamado. Era hora de dar alguns passos para trás, respeitar os sentimentos mais primitivos e humanos existentes. Interceder esses conflitos também é ser termômetro sensível para remediar no momento certo.

Além de uma situação de pobreza sem igual, meus olhos e ouvidos foram testemunhas de histórias muito tristes de abandono, desigualdades, descrença, falta de oportunidades e preconceito. Ninguém sai ileso a uma reintegração de posse. Eu, ainda me pego digerindo tudo que vivi. Talvez escrever esse relato me ajude nesse processo de transformação.

Devido a extensão grandiosa da área invadida, essa reintegração durou exatos quatro longos dias. O tempo fez questão de colocar as equipes a prova de sol ardente e de chuvas que, por vezes, dificultaram os caminhos e danificaram bens materiais. E por falar em equipe, quero publicamente agradecer a eles que não mediram esforços para que as famílias pudessem ser atendidas da forma mais respeitosa e humana possível. Sem vocês nada disto seria possível.

Ao final do quarto dia, pudemos então decretar finalizada a operação. O saldo?

  • Área totalmente desocupada e devolvida ao seu real proprietário.
  • Operação pacífica e sem nenhum registro de confronto entre ocupantes e policiamento.
  • Famílias atendidas dignamente com a identificação, encaminhamentos sociais e cadastramento de benfeitorias.
  • Ausência de repercussão negativa em mídias sobre o processo.
  • Visibilidade da execução de ações de responsabilidade social do privado.

A exitosa operação de reintegração de posse é finaliza, mas o processo de acompanhamento social junto às famílias impactadas precisa ser continuado. A gestão social não acaba ai. O monitoramento da área também é um desafio para os times de inteligência patrimonial. Programas de educação ambiental e de comunicação com o entorno precisam ser fortalecidos e reconhecidos numa ação contínua de diálogo social, além de outras tantas iniciativas ligadas
ao âmbito ESG do privado podem ser direcionadas oferecendo novas oportunidades ao território.

Este relato que me dispus a escrever não possui o intuito de enaltecer lados. Não é sobre isso. É sobre acreditar que o desenvolvimento de ações socialmente responsáveis traz oportunidades de transformação. Que processos tão sensíveis como este podem ser conduzidos de forma justa
e responsável em que os impactos negativos possam ser ressignificados de modo a contribuir com a melhoria da vida das pessoas e dos territórios.

Orgulho-me de ter feito parte desta história e poder compartilhar que ações como esta são possíveis e cada vez mais necessárias.

Autor: Maísa Porto Nacari – Diretora de Gente e Gestão do Ideias