Por Evelyn Bonifácio
Discutir a relação entre natureza, infância e inclusão deixou de ser uma escolha pedagógica, é uma urgência social. Em um país marcado por desigualdades históricas, muitas crianças, especialmente as neurodivergentes e periféricas, crescem sem acesso a ambientes naturais que favoreçam o desenvolvimento, a regulação emocional e os vínculos com o território.
O que é um Jardim Sensorial e as Soluções Baseadas na Natureza
Jardins Sensoriais são espaços planejados para estimular, de maneira controlada e acolhedora, os cinco sentidos de quem os frequenta. Eles combinam plantas medicinais, hortaliças, ervas aromáticas, flores de cores diversas, texturas variadas, fontes de água e sombras naturais. Em vez de brinquedos industrializados, oferecem terra, folhas, troncos, sementes e aromas, cada elemento pensado como recurso pedagógico e de acessibilidade.
Esse conceito dialoga com as Soluções Baseadas na Natureza (SbN), definidas pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) como intervenções que usam processos ecológicos para promover bem-estar humano, mitigação climática e desenvolvimento sustentável. Aplicadas à educação, as SbN transformam escolas e comunidades em territórios vivos de aprendizado, cuidado e pertencimento.
Para crianças com autismo, TDAH, síndrome de Down ou outras condições neurodivergentes, o ambiente sensorial urbano, que possui ruídos artificiais, luzes intensas e estímulos imprevisíveis, podem gerar sobrecargas. Já os Jardins sensoriais, ao contrário, oferecem estímulos orgânicos, ritmados e previsíveis que ajudam na regulação emocional, atenção e interação social. Ou seja, o contato regular com áreas verdes melhora a atenção sustentada, reduz hiperatividade e facilita o desenvolvimento de habilidades sociais. Ao tocar diferentes texturas, sentir aromas de ervas como hortelã e alfavaca ou acompanhar o fluxo da água, as crianças aprendem pelo corpo e constroem relações positivas com o mundo natural.
Escola Municipal Santo Amaro no Recife: Um exemplo concreto
A iniciativa da horta sensorial na escola nasceu com o objetivo de promover a inclusão de estudantes com deficiências por meio do contato com a natureza. Após 120 dias de cultivo realizado pelos alunos, a horta foi inaugurada com mais de 70 mudas de 35 espécies. Essas plantas possuem texturas e cheiros que estimulam os sentidos das crianças e geram novas descobertas, como coentro, menta, tomate-cereja, hortelã, orégano, cebolinho, babosa, beterraba, alfavaca, arruda e alface. A ideia é desenvolver o tato através das texturas das plantas; a audição, com os repuxos d’água; a visão, por meio das cores; o olfato, com os aromas das espécies; e o paladar, ingerindo os alimentos. O projeto envolve alunos com autismo, síndrome de Down, cadeirantes, surdos e crianças com baixa visão, mostrando que a natureza pode ser mediadora de inclusão.
Embora iniciativas como a horta sensorial do Recife demonstrem o potencial transformador das SbN, a realidade das infâncias brasileiras é marcada por desigualdades. Em muitos bairros periféricos, faltam praças, árvores e espaços seguros para brincar; a expansão urbana e o excesso de telas distanciam as crianças do contato com a natureza. Da mesma forma, jardins sensoriais e pátios naturalizados só serão inclusivos se forem pensados para todas as infâncias, especialmente as que vivem em territórios vulnerabilizados.
Essa análise também se apoia em vivências profissionais. A autora atua há mais de uma década em pesquisas sobre inclusão, neurodiversidade e políticas sociais e, mais recentemente, tem se dedicado ao desenvolvimento de projetos que aproximam natureza, educação e acessibilidade sensorial. Esse deslocamento evidencia uma tendência crescente no campo: a incorporação de abordagens baseadas na natureza como estratégia de inclusão e como resposta às desigualdades socioambientais que atravessam a experiência infantil no país.
Isso implica políticas públicas que considerem a natureza como infraestrutura de direitos e que garantam que cada avanço tecnológico ou educativo venha acompanhado de justiça social. Projetos isolados são importantes, mas sua potência se multiplica quando há atuação conjunta entre escolas, comunidades, poder público e organizações sociais.
Para que jardins sensoriais e outras Soluções Baseadas na Natureza avancem como prática inclusiva, não é necessário partir do zero, mas começar com o que já existe, árvores, sombras, canteiros e outros elementos naturais podem ser ativados como recursos pedagógicos. A implementação exige processos participativos que envolvam estudantes, famílias, equipes técnicas e a comunidade, além da formação de educadores com foco em neurodiversidade, acessibilidade sensorial e educação ambiental. Também é fundamental integrar políticas públicas de forma intersetorial, articulando educação, cultura, saúde, assistência social e urbanismo, ao mesmo tempo em que se monitoram impactos por meio de indicadores simples, como permanência, interação e bem-estar, garantindo que as práticas evoluam a partir de evidências e de forma sustentável.
Se quisermos cidades capazes de acolher a diversidade, precisamos começar pelos espaços onde as crianças aprendem a existir no mundo. E talvez a pergunta que guie os próximos passos seja simples, mas profunda:
O que mudaria se tratássemos o acesso à natureza como parte da acessibilidade e do direito à infância?
Até que essa resposta se torne prática, seguimos plantando ideias, políticas e raízes. Porque quando uma criança toca a terra, o território inteiro se transforma.
Evelyn Bonifácio é Mestra e Doutoranda em Políticas Sociais | Pesquisadora em Neurodiversidade | Pedagoga | Assistente Social | Consultora Acadêmica | Formação e Inclusão | Palestrante | Educação Inclusiva
Aproveite e faça o download gratuito da Cartilha: Soluções Baseadas na Natureza, elaborada pelo Ideias para inspirar empresas, governos, comunidades e cidadãos a adotar SbN no dia a dia. Você vai descobrir como integrar a natureza às estratégias de desenvolvimento, com exemplos reais do Brasil e do mundo.
